A primeira vez que ouvi falar de iniciativas slow, há uns anos, num artigo, achei graça. A mesma graça com que se contemplam ideias pouco credíveis, tendências a roçar a inutilidade. Ser o contrário pelo prazer de ser o contrário. Mas essa leitura, esse primeiro impacto, ficou presente na minha mente muito mais tempo do que alguma vez imaginei.
Acordam com o despertador do telemóvel, senão quando o som do e-mail ou das notificações ecoa pelo quarto. Tudo tem dois vistos, para garantir que a atenção pode ser cobrada em dobro. Uma resposta em segundos. A hora de almoço não é hora e o almoço também não é, com o pedido antecipado por app, ecrã, descrições ‘com tudo’ para não perder tempo na lista de ingredientes. Comemos de garfo e ecrã, a escrever, a ver e a fazer. Assiste-se a vídeos à velocidade 3.5X ao ponto de as próprias plataformas de streaming o considerarem. Guarda-se para depois tudo aquilo que não há depois para se ver.
As batatas nascem dos supermercados, o prazer de uma varanda é descoberto na pandemia, a vigilância das redes substitui o interesse (tanto pela partilha entre íntimos, como pelo interesse em querer saber o que vai na vida dos nossos amigos). Já não se lê da esquerda para a direita, lê-se na diagonal. Pergunta-se aos outros o que já está escrito no lugar onde fazem a pergunta, e os meus conterrâneos citadinos, quando se cruzam comigo no campo, sentem uma admirável surpresa quando lhes digo ‘bom dia’ (quase sempre sem resposta).
Escrevo sem moral. Mas gosto de ter um pensamento crítico sobre mim própria também. Tento distanciar-me dos comportamentos que faço para os poder observar de uma forma mais objetiva, quase científica. E o que observo é que o excesso de velocidade não está só nas estradas: está nas nossas relações, nas nossas rotinas, na forma como consumimos conteúdo. E não damos por ele. O meu instrutor de condução costumava alertar-nos para a hipnose da velocidade: quando temos o pé em descanso no pedal e estamos tão absortos no movimento que nem damos conta da velocidade em que vamos, pensando que estamos em modo cruzeiro até olharmos para o velocímetro. E podemos traduzir este conceito para tudo o resto. Mas as semelhanças não acabam aqui: infelizmente, não é só na estrada que o excesso de velocidade mata.
As iniciativas slow têm surgido um pouco por todos os cantos do mundo e em vários setores, impulsionadas pela vertente comercial — como em quase tudo na vida: slow fashion, slow food, slow travel. Slow tudo. E visto de uma forma superficial, pode parecer pouco mas reflete uma necessidade que vamos sentir (voluntária ou clinicamente) de abrandar e, mais do que isso, saborear. Porque não se trata só de abrandar o ritmo mas também de apreciar o que está ao nosso redor. Ter uma hora de almoço e almoçar, comer, saborear. Responder a uma mensagem quando queremos responder a uma mensagem. Retirar o e-mail da nossa extensão corporal como quem tira o apêndice depois de uma crise. Esperar pelas coisas, sendo que aqui há uma variedade de universos: esperar que a comida brote da terra, esperar pelos resultados, ter paciência, eliminarmos esta arrogância de que não temos de ler a introdução nem o contexto para compreendermos o ponto fulcral de informação que queremos obter. Usar o digital com consciência (não necessariamente abstinência). Estar e estar com os outros. Ler o enunciado antes de fazer a pergunta.
Biologicamente, isto é muito difícil de concretizar. Nós somos viciados em velocidade e em estímulos. Mas também biologicamente, isto é uma necessidade. Não sabemos fazer multi-tasking, o nosso cérebro não está trabalhado para este ritmo. Ou abrandamos nós por ele, ou ele vai cobrar de nós. Com estrangeirismo, apropriado pelo marketing ou não, a iniciativa slow é mais importante do que imaginamos porque diz uma coisa muito clara: o tempo que achamos que poupamos a fazer tudo ao mesmo tempo não existe. Porque nunca temos tempo.