Qual das versões orgulho?


‘Deixa a tua versão mais nova orgulhosa’ é a linha que conduz tudo o que a minha geração faz. Saímos de um comportamento excêntrico, onde queríamos agradar e orgulhar (ou invejar?) as pessoas de fora, ao nosso redor, para nos virarmos para nós próprios e respondermos às nossas próprias ambições e projeções sobre quem queremos ser. Cumprir os sonhos das nossas versões mais novas, atingir os objetivos que projetámos há 10 anos num quarto onde já não dormimos, entrar em contacto com a nossa criança interior que tinha planos deliciosos para o presente, mas foi obrigada a projetar o futuro quando lhe perguntaram o que queria ser quando fosse grande, sem perceção da unidade de grandeza.

A dimensão da resposta ao orgulho é tal que damos por nós como pais com síndrome de separação que, cada vez que se encontram com a sua criança interior, dão-lhe tudo o que ela não precisa, enchem-na de coisas e respostas que nunca pediu ao invés da atenção e da integração que deseja. A ausência sente-se dos dois lados, não só na nossa falta de presença na espuma dos dias, mas também na sensação de que ela não faz falta para nós. 

A verdade é que, quanto mais envelheço – e digo-o no auge ancião dos meus quase 30 anos -, mais me apercebo de que ir ao encontro da criança interior é um sinal primário de ausência. Ela não foi a lado nenhum, nenhuma versão de nós abandonou-nos ou perdeu-se de nós. Nós é que fomos embora. Partilhamos uma guarda onde só as reencontramos quando são convenientes, às vezes trendy e todas as vezes seletiva; sim, é doce reencontrarmo-nos com a nossa criança interior, mas quantos reencontros já tivemos com a nossa insuportável versão adolescente? Quantas vezes ligámos a dizer que afinal não a podíamos vir buscar, que estamos presos no trabalho do embaraço que nos causou? 

Qual das versões mais novas devo deixar orgulhosa? É que tenho várias. 30 anos – e acumula à medida que vou (bem) vivendo -, já arrecada algumas versões de mim, com sonhos, expectativas, aprendizagens e memórias. Todas com graus de satisfação diferentes, suponho. Não saber se conseguiria deixar todas as versões orgulhosas de mim e saber que houve sonhos que não cumpri em tempo útil (nem sei se vou cumprir) é uma enorme pressão. Orgulharmo-nos a nós próprios devia aliviar a pressão de tentarmos orgulhar várias pessoas, mas continuamos a ter várias versões ao longo da vida.

Quando escutava a pergunta ‘o que é que a tua versão mais nova diria se te conhecesse, hoje?’ não sabia dizer o que é que nela não me fazia sentido.

Fazer uma análise do que éramos e do que somos, do que queríamos e do que fizemos, do que sonhámos e conquistámos requer distância. Uma ponte quase argonáutica, porque quem éramos no ponto de partida já não é o mesmo que quem somos no ponto de chegada. Fazermos a nossa versão mais nova orgulhosa parte do princípio de que não está connosco no ponto de chegada e que a ponte nos aproximou, tirou o abismo entre nós. Só há abismos quando há rotura. 

Mas eu não tenho esta distância de mim própria, nem sei ter. As minhas versões não são um bando de miúdas a gerir o meu divórcio com a juventude. Se eu entrasse numa sala com as minhas versões mais novas, todas teriam reações diferentes, mas uma só seria universal: eu não seria surpreendente. Estou com elas todos os dias. 

A minha versão adolescente faz as ligações criativas mais espetaculares e é ela que ainda canta os refrões das minhas bandas favoritas. Ela gere até que ponto ainda consigo ser adulta e ser cool à frente de outros adolescentes, é ela que se atualiza. A minha versão de 25 anos tem a paciência que outras não têm para pensar comigo e processar os grandes momentos que vou tentando encaixar na minha vida, a superação de traumas – e mal posso esperar por esta minha versão atual estar do lado de versões minhas mais velhas e mais capazes de lidar com isto. A minha versão de 18 anos dá-me a energia para fazer mais 200m de crawl quando estou com um dia de trabalho em cima. E a versão de 10 assina todos os meus textos porque foi com ela que tudo começou – mesmo que já não seja num caderninho laranja. 

E a minha versão de 5 anos? É ela que vê os filmes da Disney, é ela que dá o nó às pulseiras de missangas cor de rosa e que mergulha batatas fritas no sunday. É ela que ainda rodopia quando coloco um vestido e que enruga os olhos quando ri. Acho que também é ela que mais está com a Belka e mais esteve com a Laika.

As minhas versões mais novas tinham sonhos e ideais, projeções do que poderia vir a ser como 'crescida'. Algumas um pouco mais megalómanas do que outras; talvez seja um desgosto para a Inês de 5 anos saber que a minha profissão não é bailarina-princesa (desculpa, dei o meu melhor, mas o príncipe William está a ficar careca) ou que não fiz oitenta interrails na Europa como a Inês de 15 anos sonhou. Nem que não tenha a minha própria casa, como a Inês de 20 idealizou. Mas nada disso as apanha de surpresa porque não há uma ponte entre nós. Nunca houve abismo. Fizemos esta viagem juntas.

Fiz o meu ponto de partida quando nasci e tenho feito este caminho, sem insegurança por baixo, com todas elas. Não só com a sua companhia, mas também com a sua intervenção, sem partilhas de guardas, sem as perder pelo caminho. Cada uma com o seu momento para ser e estar e eu com os limites para definir quando é a vez de cada uma surgir ou deixar a Inês do presente ser e resolver. E, acima de tudo, a testemunharem tudo o que sou e tudo o que faço. 

Vou fazer 30 anos em breve e não sei o que pensar sobre isso, se for honesta. Mas sei que tinha dificuldade em processar a mensagem ‘deixa a tua versão mais nova orgulhosa’ porque, desconfio, não era esse o meu objetivo. Deixá-la orgulhosa implicaria contar-lhe o que fiz. Prefiro que participe comigo. 

Se puder ajustar a frase, sei que o que as minhas versões mais novas pediam não era que as deixasse orgulhosas. Era que não as deixasse para trás.

5 comentários

  1. Oh já te sigo há tantos anos. Confesso que este texto mexeu um bocadinho com o meu interior..já vou uns anos depois dos 30 e sou sincera que me senti a chegar a uma década sem respostas...
    Este texto definiu afinal tudo. A minha ansiedade, o meu vazio.
    Obrigada!
    Um beijinho grande e bem vinda à nova década

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  2. Estou com lágrimas nos olhos 🥹 que carta linda endereças às Ineses que te acompanham e fazem parte de ti. Que incrível poder presenciar relatos destes. Obrigada por nos dares a conhecer um pouco de todas as Ineses que te compõem! ❤️🫂

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  3. Que texto bonito e uma resposta a uma pergunta muito pertinente. Parabéns ❤️

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  4. Que texto lindo! Fiquei emocionada. A última frase foi a cereja no topo do bolo ♥️

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  5. "Se puder ajustar a frase, sei que o que as minhas versões mais novas pediam não era que as deixasse orgulhosas. Era que não as deixasse para trás." tão verdade ❤️

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