Lugares remotos


Estava perdida na sua coleção digital de registos, que partilhou comigo quando a nossa viagem terminou. É sempre com curiosidade que vejo as fotografias particulares de uma aventura partilhada; os detalhes que me passaram despercebidos, mas que não escaparam à atenção de quem os notou. Uma forma de nos transportarmos até lá para redimir essa desatenção. 

Não era só uma, eram muitas. Registos de mim, sem saber. A ler, conduzir, escrever. Às vezes, simplesmente a viver - e quase a acreditar que viver é, de facto, simples. Olhei para aquelas fotografias sem reconhecimento, incapaz de localizar o momento exato em que a câmara preservou para sempre aquela imagem, uma memória que só a ele lhe pertencia, já que eu não tinha recordação nenhuma de ter sido captada. E talvez tenha sido isso que me fez lembrar do quanto é um momento raro. 

Hoje, a fotografia desdobra-se, sem rolos contados a 27 momentos, mas continuo a limitar os registos de mim própria como se, do outro lado, ainda agarrassem em câmaras analógicas, onde cada registo era cautelosamente selecionado - e em mim seria desperdício. Olho com espanto para as fotografias de mim - não minhas - raramente bonita, porque a espontaneidade não obedece a sorrisos treinados e estratégias estéticas. Sou eu, mas nem sempre me reconheço. Não observo tudo de mim. Sou o conhecimento de mim própria, mas nunca a imagem. 

Ao espelho, antecipo sempre o meu reflexo, nunca me desarmo. E quando peço uma fotografia e me coloco à frente da lente acompanhada pela vergonha, refugio-me numa pose, no sorriso tímido que não me compromete. Mas os outros veem-me mais do que alguma vez serei capaz de me ver. 

Há lugares que habitam em mim, mas que me são remotos. Ironicamente, acessíveis aos outros, sem obstáculos. Encontro também, nos outros, os seus lugares remotos, os recortes das suas gargalhadas, expressões, tiques, pormenores, costas, nucas, posturas. Reparo nas suas formas de viver como se segurasse num retrato completo de cada pessoa que estimo. O seu jeitinho de ser, mesmo quando nem sabem que são. 

Olhei para a sua coleção de recordações e vi os lugares remotos de mim com a relutância de quem não se sente bonito em registos cândidos. Uma censura cruel, cheia de pensamentos coloridos a lápis azul. E, desta vez, numa irresistível transgressão, deixei a análise à margem. E permiti-me a conhecer os meus lugares.

Fico grata por sentir que a minha espontaneidade, os meus lugares remotos, merecem ser guardados. Sinto o conforto de descobrir que, quando estou a viver, também mereço ser registada, tal como registo o viver bonito das minhas pessoas. 

É um mundo de galeria ilimitada e de estética apurada, mas repleto de invisibilidades e ângulos mortos. Em cada álbum de fotografias espontâneas, agradeço por me verem. Por me mostrarem como vivo. Uma memória que se vê e não apenas que se conta. Porque não há humanidade maior do que mostrarmos aos outros os seus lugares remotos.

Olha a forma bonita como és capaz de viver. Eu vejo.

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