A Aldeia Global


Os favoritos foram – e são – a minha imagem de marca digital. Sei-o através de medições mensuráveis e subjetivas. E, este ano, decidi abrir a partilha dos favoritos à comunidade: o que é que as pessoas que me acompanham gostaram, recomendaram ou viveram, nesse mês? O que é que se destacou? Arranquei com o objetivo de tornar os meus conteúdos menos unilaterais e mais integrados a uma ideia de comunidade, mas despertou outras questões. 

A Ana recomendou um creme eficaz para pele acneica e a Filipa um restaurante incrível em Braga. São dois exemplos de algo que, pelo meu meio, provavelmente os meus leitores jamais iriam descobrir – não vou a Braga há mais de um ano e nunca tive acne. Não desvalorizo aquilo que recomendo – que também é bom e, principalmente, também é bom para muita gente -, mas não é diversificado (não tanto como, às vezes, pensamos que é), nem é global (não tanto como, às vezes, pensamos que é). A Ana e a Filipa não fazem conteúdos para a internet (tanto quanto percebi). 

Dei por mim a pensar em quem eram, realmente, as minhas maiores influências e, depois de tantos anos no digital, fui transportada para os meios pequenos e circulares do meu grupo de amigos – circulares porque a mesa da esplanada ainda é, para mim, o meu canal. Não sigo a maior parte dos influenciadores mais populares (um motivo que não me engrandece nem prejudica), mas perco a conta aos momentos em que amigas minhas traziam, usavam ou fizeram algo que me deixou rendida e a desejar poder ter, usar ou fazer o mesmo, sem vergonha de mimetizar. 

Melhor; recordo-me do sem fim de vezes que amigas minhas mostraram-me algo e disseram estou a amar e sei que vais gostar também, ou acho que vais gostar disto. Uma curadoria exclusiva e cujo objetivo não mais é do que a partilha. Num mundo de influência, os meus amigos continuam a ser os meus maiores influenciadores. 

Mostrar as recomendações da Ana, Filipa, Miguel ou tantas outras pessoas que tiveram a generosidade de partilhar o que se destacou no seu mês não é um momento de esplanada entre amigos. Mas lerem as minhas recomendações a solo também não é. Porque em nenhuma esplanada estamos 30 minutos a falar sobre o que gostamos sem ouvir os outros (e, se estamos, depressa vamos deixar de estar, um dia). É a conversa que torna a partilha especial, personalizada, diversificada. Não há protagonistas. 

Aldeia global. Foi este o termo utilizado pelo filósofo McLuhan quando quis tentar compreender o potencial da internet nos anos 60. Ainda hoje, sonhamos com essa aldeia; conceptualizamo-la, criamo-la à imagem do que achamos que o digital (e uma aldeia) pode ser. Esta aldeia global onde podemos ir à vizinha perguntar se ela tem ovos e ela vai lá dentro buscar, numa onda de amor e partilha. 

Mas, numa aldeia, nós não perguntamos à vizinha se ela tem ovos; e ela não vai lá dentro buscar. 

Numa aldeia, a vizinha entra pelo nosso portão, sem hora marcada, com caixas repleta de ovos, espinafres, brócolos e laranjas. Este ano a terra estava boa, trouxe umas coisas, diz. A necessidade é nutrida com caixas e sacos generosos. Não se pergunta se tem quando já se dá. Vive-se num espaço que tem um nicho no canto e não num nicho que tem um espaço no canto.

Também não se bate à porta. Não me lembro de ter de abrir portas na casa da minha avó (e, já agora, também não me lembro de as fechar) e o meu refugado de frango preferido era feito a muitas mãos. O caldo era colocado ao lume e ela desaparecia para a sua horta. Não era um gesto de abandono nem de perigo; logo a vizinhança ia fazendo visitas pela manhã e remexendo a colher por ela, sempre que necessário. Uma invasão que viola as normas de qualquer privacidade e que temperava qualquer refeição com a disponibilidade de muita gente. A tendência é lindíssima, mas difícil de enquadrar no Pinterest. 

É preciso uma aldeia para cuidar de uma criança, e essa aldeia sabe quem somos, onde moramos, o que gostamos. Traz morangos a mais porque sabe que gostamos deles. Diz com pesar que este ano as laranjeiras não estão lá grande espiga, como se houvesse algo menos delicioso do que comer o que se viu crescer, sem preço ao quilo.

As aldeias são alimentadas de presença e partilha – e de um passado de fome. Dá-se porque já não se teve. Alegra-nos as cores da primavera e o verde a brotar da terra porque já se passou as mãos em terra árida. A disponibilidade de ir ver o outro, de termos coisas que os outros não têm e também de não termos coisas que os outros têm. E de trocar sem baterem à porta a pedir.

Quando estou com as minhas amigas, em lugares onde uma horta cabe na varanda, elas trazem caixas e sacos de tudo sem eu pedir. Alimentam-me com o que colheram e têm a mais para eu também experimentar. E mesmo que não sejam sacos de hortícolas da época, nutrem-me de outras formas pela sua disponibilidade em dar sem eu ter de perguntar. Nunca lhes bati à porta.

Quando sonhamos com uma aldeia global digital, não sei quantos de nós viveram, realmente, numa aldeia que não a imaginada em fotografias estéticas. Porque há tanto de uma aldeia que não cabe num visual. E há algo de tão reconfortante nisso. A Ana e a Filipa têm tanto que eu não sei, que não tenho, que não plantei nem vou colher. E embora, agora, comece o ano a bater-vos à porta e a perguntar se têm alguma coisa, espero que um dia cheguem ao meu portão imaginário, sem hora marcada, e que partilhem comigo o que colheram. Sem pressas. Cresce muita coisa numa horta, mas o instantâneo nunca vi a ser plantado.

1 comentário

  1. "Cresce muita coisa numa horta, mas o instantâneo nunca vi a ser plantado." tão verdade!

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