A última página


Folheava o livro todo até chegar à última frase da última página e lia-a com ausência de remorso e a transbordar de curiosidade. Não importava saber o fim, motivava-me o 'como?' e, a essa pergunta, não há última página que desvenda. 

Era tomada pelas emoções da última linha. O espanto, a tristeza, o alívio, a intriga, a comoção. O aborrecimento, também. Não sabia qual sentimento esperava por mim, ali. Sabia o fim antes de começar. Não há nenhuma outra história no mundo onde isto seja possível. 

Julguei muitos livros pela capa e pelo seu fim, ignorando que a qualidade da história, na sua grande maioria, reside no quanto consegue arrebatar-nos pelo caminho. Na surpresa do inesperado, do capítulo onde tudo muda, do confronto ou resolução. Do que se vai agregando na narrativa à medida que acumulamos páginas na mão esquerda. Abrimos o livro sem nos lembrarmos que a melhor ação é o virar da página. 

Quando tudo o resto nos é apresentado – ou exibido? – de mão beijada (com ou sem vontade de ver e saber) é difícil conceber uma história onde a última frase não pode ser lida. Não está escrita. Se todos nós pudéssemos pegar nos nossos livros – alguns com um cheiro promissor a novo, outros já com o aroma nostálgico das páginas velhas – encontraríamos uma folha vazia no final. A infinitude de uma página em branco traz mais ansiedade do que criatividade; nada oferece menos liberdade do que sabermos que podemos escrever o que quisermos, sem a menor orientação. A tinta pode derramar a meio. 

Sermos os protagonistas a escrever as nossas histórias sempre foi uma frase reconfortante no meu livro. Não há ninguém que não goste de saber que pode criar os seus próprios capítulos, os seus próprios desfechos. Os seus próprios conflitos, também. Mas quem escreve o inesperado? Quem escreve o que não estava planeado? Estaremos nós, em cada uma das nossas secretárias, a escrever as nossas histórias ou partilhamos uma grande folha de papel? Quero acreditar que a minha mão rabisca uma frase até se cruzar com outra; até a letra da última palavra que escrevi tocar sem querer na primeira de uma outra palavra, noutra caligrafia. Cabe-nos a nós decidir o que fazer em seguida: dar margem para que caibam frases que não são nossas; partilhar capítulos; riscar e arriscar ser feliz. Ou mudar de linha.
Há mais espaço em branco para continuar. 

Nas minhas páginas, encontro vários tipos de caligrafia. Várias vezes a minha, em rabiscos cansados, anotações passadas a limpo, abreviaturas de quem escreve em sobressalto. Tem marcas de chávena, confettis presos na costura do livro – que releio com o maior cuidado para que não caiam. Marco as leituras com bilhetes e papelinhos. Sublinho muitas passagens, nem todas escritas por mim. Algumas têm letras com lágrimas. As folhas perderam o seu rigor liso, não aguentavam manter-se iguais com a minha tristeza ou comoção. Que bonito saber que as páginas reagem e transformam-se connosco. 

Detenho-me em reescrever e editar. Por saber que é impossível e porque foi assim que foi escrito da primeira vez, por alguma razão. Porque a mão era mais nova, mais pequena e menos sábia. Porque dei espaço para outros escreverem sem limites para o que podiam anotar. Por ignorância e frustração -  e, nestes, conseguimos escrever sem tinta.

A lombada apresenta as primeiras marcas. Passo-lhe o indicador com cuidado, percorro a marca que indica o caminho por onde abro o livro. Dobrei-o para escrever e ler melhor. O entusiasmo de o fazer era maior do que manter a lombada perfeita. Há lombadas que chegam a não ter marca. Não há mais ninguém para abrir o livro. 

Não me recordo quando deixei de ler a última frase da última página. Lembro-me de perceber que tinha deixado, que tinha descoberto cada pormenor e detalhe da história na cadência assim determinada por quem a escreveu. De conhecer nomes, personagens e desfechos nos capítulos a que lhes estavam destinados. E de pensar que, no final, a última frase ia estar ali de qualquer forma. Mas que, quando a história é imperdível, não temos pressa de lá chegar.

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