O Dicionário das Palavras Perdidas


Seria expectável que um livro que presta homenagem ao poder das palavras me conquistasse logo na premissa, mas admito que não lhe prestei particular interesse numa das minhas visitas à livraria. Felizmente, desembrulhar este exemplar no Natal e receber o empurrãozinho da Carolina fizeram com que a história d’O Dicionário das Palavras Perdidas voltasse a estar em rota de colisão comigo. 

O Dicionário das Palavras Perdidas é o tipo de história que se assemelha a uma mala de viagem: achamos que tem o essencial à vista e damos por nós a descobrir mais e mais camadas e compartimentos que tornam tudo mais rico, mas também mais difícil de explicar com simplicidade. 

Neste livro, conhecemos Esme, uma jovem que acompanha o seu pai lexicógrafo no seu trabalho pelo Scriptorium, local onde está a ser preparado o primeiro Dicionário de Oxford de sempre. É numa dessas expedições que Esme cruza-se com um pedaço de papel contendo a palavra ‘Escrava’ e que, instintivamente, apanha-o e esconde nos bolsos, resultado no desaparecimento da palavra no dicionário. 

Esta é a premissa descrita na contracapa do livro e continuo a sentir que é simplista e um pouco desinteressante. A parte curiosa é que o mote deste livro foi inspirado no facto de, realmente, a palavra ‘Escrava’ ter faltado no primeiro Dicionário de Oxford – o porquê ninguém sabe. Mas o que efetivamente me conquistou nesta história foram todas as ramificações paralelas à concretização deste dicionário. Esme apercebe-se rapidamente que há uma curadoria muito particular e patriarcal para selecionar quais as palavras que vão figurar no dicionário, evidenciando ainda mais o abismo profundo que existe entre o privilégio de quem tem acesso a uma educação e eruditismo e às classes que nunca irão ver as suas palavras coloquiais figuradas – ou, quando estão, são representadas sobre uma perspetiva masculina e unilateral. Esta jornada de Esme para procurar representar estas palavras do universo feminino enquanto se debate com os próprios desafios pessoais, sociais e relacionais de se ser mulher foram as duas partes que me conquistaram em absoluto.

Amizade, ambição profissional, maternidade e ativismo são apenas alguns dos temas que dão envergadura a estas páginas, escritas com o equilíbrio perfeito de aprofundamento e sensibilidade poética. Foram várias as passagens que me fizeram refletir, principalmente na sensação de que muitos dos temas que estas personagens vivem e se debatem em pleno séc. XIX ainda tocam-nos profundamente dois séculos depois. 

Não é um livro que se devora, até porque não tem ritmo para isso; alguns capítulos poderiam ter sido abreviados ou até mesmo suprimidos sem que a história perdesse impacto, e talvez  isso ajudasse a melhorar a cadência de leitura – que é bem lenta, devo alertar-vos. No entanto, percebo que este passo de passeio nos ajude a criar uma ligação mais familiar com as personagens. 

O Dicionário das Palavras Perdidas foi uma agradável surpresa. Não precisava de ser relembrada do poder das palavras – não estaria a insistir num blog se não acreditasse nem tivesse presente, todos os dias, esse facto -, mas relembrou-me do quanto a nossa visão do mundo, do quanto os nossos pensamentos e leituras são marcados pela forma como aprendemos o significado de cada palavra. E quando todas as palavras do universo feminino ou de minorias têm um significado filtrado, é difícil contrariar o que aprendemos – mas possível e importante. O meu único arrependimento foi não ter lido em inglês. A tradução parece-me competente, mas, sendo um livro sobre palavras e tendo o inglês nuances em certas terminologias e significados, acho que alguns detalhes se perdem no filtro da tradução. Se estão confortáveis a ler em inglês, recomendo muito que escolham este livro na língua original.

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Bertrand

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