No ano passado, tive, fixamente, um desejo na minha mente de concretizar. Para materializar melhor esta reflexão, vamos imaginar que eu desejava muito uma bola dourada e que a procurei por todo o lado.
Foram incontáveis os dias em que me senti incompleta sem ela, em que a idealizei como o que mais desejava. Chorei por ela, tive ataques de pânico por ela, questionei um sem-número de coisas com ela. Não a podia ter. ‘Não posso ter a minha bola dourada’, dizia.
Até que, no último dia do ano, a bola dourada apareceu. Bom, não era mesmo uma bola dourada cintilante; era, na verdade, bem defeituosa. Enferrujada, já não tinha o mesmo brilho. Mas era uma bola. E era dourada. E bastava-me estender a mão para a agarrar. O meu tão almejado desejo. E dei por mim completamente petrificada.
Durante todo aquele tempo, o meu foco era absoluto: ter a bola dourada. Mas só quando ela de facto se materializou à minha frente é que ramificaram outras questões: como quero esta bola dourada? Quando quero esta bola dourada? Onde quero esta bola dourada? O que aceito sacrificar agora mesmo por esta bola dourada? E se, ao início, achei que estas questões levavam-me para um espaço de idealização que atrasava a realidade (‘pára de pensar e agarra aquela bola dourada ferrugenta antes que ela vá!’), percebi que aquelas perguntas eram muito mais reais do que o meu desejo. Elas revelavam algo mais importante do que ‘Não posso ter a bola dourada’. Elas revelavam que ‘Eu posso ter a bola dourada, mas não quero’.
O posso e quero são primos muito próximos na mesa das decisões. Ambos são convidados de honra, embora não enchamos o prato de um e do outro da mesma forma. Às vezes, falamos muito mais com o quero do que com o posso. Mas terminamos a refeição a achar que os nossos dois dedos de conversa com o posso foram mais determinantes.
A verdade é que esta não é uma mesa para três (eu/tu, quero e posso). Há outros convidados e esses, também sendo de honra, ficam com os restos: o não e o gosto. É muito difícil admitir que podemos deixar de querer algo que gostamos. É igualmente duro apenas podermos o que não gostamos de querer.
Mas podemos, sempre.
É que confundimos muitas vezes o poder do querer. ‘Não posso porque não tenho tempo’, ‘Não posso porque não tenho condições’, ‘Não posso porque não estou numa fase boa para deixar/fazer’. O não e o posso andam juntos, mas por nunca os considerarmos individuais, só imaginamos o posso com o não atrás.
E embora o posso tenha todo um contexto socioeconómico fundamental no regime e atualidade que vivemos, dizermos que não podemos não fragiliza o que está errado no contexto externo: só nos fragiliza a nós.
Em liberdade, quase sempre podemos. E, às vezes, por muito que custe admitir, gostamos. Mas não queremos.
Não queremos.
Não querer não é o mesmo que não desejar. É pensar a fundo em como é que desejamos aquela bola dourada até que ela deixe de ser a bola dourada dos outros e passe a ser a nossa bola dourada. Só assim aceitamos querer o que já podemos.
Eu posso ter aquela bola dourada. E eu gosto daquela bola dourada. Mas não a quero. Não a quero assim.
Corro o risco de não me aparecer mais nenhuma. Corro o risco de a próxima bola não ser dourada. Ou nem ser bola. Ou nem ser nada. O cerne das escolhas é mesmo esse: assim que todos nos levantamos da mesa, nunca mais podemos repetir aquela refeição. Os convidados mantêm-se, mas a toalha, o serviço e o cardápio são completamente diferentes e inimitáveis. Quando somos realistas com o que podemos, gostamos e (não) queremos, somos também mais sinceros com o que desejamos.
Desejo muito uma bola dourada. Mas talvez não seja dourada. Talvez não seja uma bola. Talvez não seja nada.
Ainda não sei como a quero. Mas sei que, quando a quiser, também a posso. Enquanto for livre, posso.
Um bonito texto que nos faz refletir, sem dúvida.🤍
ResponderEliminarUma reflexão que serve para diversas áreas da nossa vida e amei demais ler ela hoje. Fiquei impactada e pensativa com o que desejamos.
ResponderEliminarBeijos.
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