ISTO É TÃO INÊS | Síndrome do Impostor


Gosto muito de uma canção da Amália em que ela confidencia que, todas as noites, dorme acompanhada: pelo medo. O poema, na verdade, é da origem de Reinaldo Ferreira, mas é na voz dela que ganha vida a canção sobre uma emoção que, também ela, parece ter corpo e pulsação. 

Recordo-a sempre que me cruzo com a minha companhia: a Síndrome do Impostor. Uma companhia que, ao que parece, se desdobra em milhões e assombra a mente de tanta gente. 

A Síndrome do Impostor mora comigo e, numa meta-análise exaustiva, consigo traçar um milhão de caminhos e razões que me levam a encorpar este sentimento: o facto de ter a perceção que, no mundo, existem milhares de milhões de pessoas capazes de fazer o que eu faço, ou melhor; o facto de eu querer ser sempre a pessoa com menos conhecimento numa sala; o facto de ser insegura com algumas das minhas capacidades.

Diminuo muito do que faço, não sei aceitar elogios e penso sempre por baixo. Já perdi a conta das vezes em que isso me prejudicou, e quando a Síndrome do Impostor me deixa sossegada uns instantes, observo com clareza que não havia razão para me diminuir. Mas no olho do furacão, tudo parece enevoado. E mesmo a olhar para o chão, não tenho qualquer perceção da minha grandeza.

Há uns dias, quis reproduzir a receita de arroz doce da minha avó. Ela ensinou-me passo a passo, deixando-me mexer e participar no processo para sentir todas as texturas, para perceber quando estava no ponto, para me familiarizar com a receita. Comprei os mesmos ingredientes, mas desta vez aventurei-me a solo. Ficou ótimo, delicioso. Mas não ficou igual. 

É que ninguém faz arroz doce como ela. Isto é uma referência muito comum na culinária, o ingrediente amor. É uma ideia quase etérea mas que combate muito bem a Síndrome do Impostor: é que não importa só a técnica, o conhecimento, as bases, o know-how. Há o saber fazer, e há o como se faz, e este ‘como’ nunca é apenas funcional. Ninguém faz arroz doce — e outras receitas — como a minha avó, e essa é a razão pela qual os vizinhos batem à porta a pedir-lhe uma taça. E assim como a minha avó é única a fazer arroz doce, também todos nós temos uma forma de fazer que não prima pela (só) técnica nem pelo protocolo: é porque é feito por nós e não é reproduzível, mesmo quando passível de copiar. 

É difícil dar forma a esta impressão digital que marca o que fazemos? É. Mas a Síndrome do Impostor é igualmente vaga e disforme, sem rosto, feitio ou engenho. É tão vaga quanto aquilo que nós fazemos e que nos torna bons e inimitáveis. Mas nós damos realismo à Síndrome do Impostor. Porque não dar realismo à nossa impressão digital? Pode ser pelo empenho, pode ser pelo amor, pode ser pela nossa assinatura invisível, que deixamos em tudo o que fazemos e que não é palpável, mas é percetível. É o que nos torna únicos. E é o que expulsa o impostor, mesmo que o medo, tal como a Amália canta, continue a morar connosco.

2 comentários

  1. Já senti isso, quando era novinha. É realmente mau viver com essa sensação, mas reconhecê-la já é meio caminho para a ultrapassar. Acredita em ti, foca no que és capaz de fazer bem e ganha balanço para melhorar aquilo que sabes poder melhorar.
    Como disse Pascal: Ninguém é tão sábio que não tenha algo pra aprender e nem tão tolo que não tenha algo pra ensinar"
    Beijinhos
    Coisas de Feltro

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  2. Acho que já todos passámos por aí. Temos sempre uma vozinha que nos diz que há alguém, algures no mundo, que consegue fazer tudo o que fazemos, mas melhor, mais rápido. E talvez haja. E essa pessoa pensa exatamente da mesma maneira, que há alguém no mundo que consegue fazer melhor, e essa pessoa também pensa assim, e por aí vai. E não há nada de mal com isso. Passa a ser mau quando deixamos de fazer o que nos torna únicos, porque há alguém que consegue fazer melhor. É aí que começam os problemas

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