MUNDO || Vamos falar de humor sem piada.


Demorei muito tempo para escrever esta publicação e ainda mais tempo a ponderar se a devia publicar. Às vezes faltavam-me as palavras certas e outras vezes deixava a indignação tomar conta do que escrevia — e por mais que seja legítimo, nunca chegamos a bom porto por aí.

Mas decidi perder a vergonha e falar. Porque há um limite. 

No verão deste ano, passeava no Chiado com amigos — raparigas incluídas. Cruzámo-nos com alguns operadores de câmara e um repórter (ou assim parecia ser) que nos interrompeu e perguntou se podíamos participar numa peça humorística para um programa de televisão de canal aberto. Estavam devidamente identificados.

O repórter teve especial insistência comigo, querendo muito que participasse e eu, em pura inocência, perguntei-lhe o que era preciso fazer. Várias coisas passaram-me pela cabeça, entre elas, os comuns segmentos de perguntas de cultura geral ou sobre determinados assuntos do momento. Mas a sua resposta foi simples: 'só tens de tirar uma selfie comigo, pode ser? Juntas-te a mim, olhas para aquela câmara e sorris!'

Não tive tempo, sequer, de perguntar qual era o propósito de tirar selfies com pessoas na rua porque já tinha o braço dele à minha volta, sentia-o empurrar-me e uma câmara colossal a encarar-me de frente. Dei por mim a sorrir, entorpecida e com vontade de despachar o assunto. E foi então que vi a câmara a baixar para focar o meu peito.

Para focar o meu peito. Leram bem.

Não considero que isto devesse ser relevante para este testemunho mas sei que muito gente se questionará e não, não tinha qualquer decote. Nem o meu peito ou o colo, sequer, estavam expostos. Mas mesmo assim senti-me tão vulnerável e exposta que, assim que me apercebi, tapei o meu peito com as mãos e afastei-me do repórter com um empurrão indignada.

Só então tive direito a uma explicação. 'É uma boobselfie. Nós tiramos fotos com vocês e depois focamos o peito'. A peça era real e eu acho que nunca fiquei tão indignada na minha vida, num choque que me paralisou e me deixou mortificada de vergonha. Não sei como acabei por lhe dizer o quanto essa peça era uma afronta moral e um desrespeito à mulher e ao seu corpo. Não sei como o acusei pela falta de transparência e ética. Não sei como o obriguei a eliminar uma filmagem que eu não tinha autorizado. Mas a minha voz tomou conta de mim e levou avante tudo o que queria dizer.

O repórter não só olhou para mim estupefacto como ainda disse umas quantas asneiras para mim. Muita gente achou a minha atitude exagerada. Vou repetir: muita gente achou que foi exagerado eu não admitir que filmassem o meu peito sem eu ter sido informada ou sequer ter dado autorização para tal. Talvez esta percepção tenha-me custado ainda mais do que crer que, em 2015, este tipo de peças ainda são idealizadas e preparadas de uma forma tão desonesta.

Não sei se a peça realmente chegou a ir para o ar mas só a ideia de que alguém achou uma boa proposta já me deixa enojada e arrepiada. Vivemos uma atualidade que discute a liberdade do corpo da mulher, incluindo a sua própria exposição. Um debate compreensível. Mas o que esta peça humorística falhou em compreender, é que se discute a vontade da própria mulher em ser dona do seu corpo. E essa vontade passa pelo desejo ou não de expor o seu corpo. Uma vontade que só a ela lhe diz respeito e que não pertence a repórteres, campanhas, peças humorísticas ou canais de televisão. E repugna-me cada vez mais que confundam o poder de decisão sobre o corpo e direitos de uma mulher com o poder de tornar os direitos e o corpo de uma mulher num objecto. Numa razão para rir. Numa razão forçada para rir.

Estou farta que alimentem a ideia de que a mulher é uma piada. Estou farta que achem que porque a mulher tem rabo e mamas, tem mais é de ser apreciada sem se queixar. Estou farta que apitem para mim na rua a achar que isso é uma declaração de amor irresistível. Estou farta que achem que o meu corpo é a vossa propriedade. Estou farta que me digam que estou a exagerar quando invadem aquilo que eu não autorizei. Muitos me disseram 'calma, ele já apagou'. Apagou o quê, ao certo? O clipe de vídeo que eu não permiti que fosse ao ar, certo. E a humilhação porque eu e tantas outras mulheres passaram nesta peça, surpreendidas por uma câmara a descer e cujo choque não permitiu dar som à voz de indignação?

É uma brincadeira. Não dramatizes. Vai com calma. Sê mais inocente, querida, leva na desportiva.

Não.

Ninguém tem o direito de expor ou fotografar/gravar o teu corpo e muito menos sob subterfúgios. Seja por brincadeira ou não. E enquanto estas mensagens, especialmente em canal aberto (coisa que me deixa a ferver) ainda passam em pleno 2015 é difícil ser feminista sem passar a ideia de que somos pessoas profundamente revoltadas. Porque, para mim, isto fervilha e revolta-me tanto como se tivesse acabado de me acontecer. Basta.

8 comentários

  1. Bem, é preciso ter uma lata de todo o tamanho. Canal aberto... Não acho que tenhas feito «cenas». Eu faria exactamente o mesmo. Aliás, faço exactamente o mesmo quando vou a qualquer lado e se põe a olhar para onde não devem. Sou a pessoa mais simpática do mundo se me tratarem com respeito, afinal, a aceitação de nós mesmas passa pelo respeito que as pessoas nos têm. Apenas eu decido o que fazem com o meu corpo. Sempre que me apitam na rua fico extremamente indignada. Não por me acharem suficientemente gira para apitarem, mas porque o fazem sem qualquer cuidado e, muitas vezes, com gestos obscenos. Não é a primeira vez que fico estática na rua a olhar severamente para o carro que por mim passa e apita. Assim como censuro com o olhar quando recebo um piropo. Lá porque andamos numa luta «feminista» contra a falta de integração da mulher na sociedade, não quer dizer que possam abusar assim da nossa imagem. Principalmente, porque não andamos aí a abusar dos atributos do homem a torto e a direito. Que patetice! Não os vejo a fazer programas destes com homens.
    É mesmo complicada esta batalha, contudo, não podemos desistir.

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  2. Nem acredito no que acabei de ler. Aplaudo de pé a tua postura perante uma situação absurda dessas. Não estavas a exagerar, muito pelo contrário, o que o "repórter" (recuso-me a tratá-lo como tal) fez é no mínimo criminoso. O facto de existirem parvinhas que compactuam com este tipo de "acções" é algo que me supera, tomara que todas fossem como tu! É nestas alturas que tenho imensa vergonha dos restantes indivíduos do sexo masculino. Tanto neste caso como nos piropos e por aí fora, é simplesmente nojento. Não percebo qual é o prazer de apitar um carro ou gritar profanidades a uma mulher. Ela não vai largar tudo e correr para os braços deles, portanto porque é que insistem? Enfim, agora sou eu que estou a fervilhar com isto ugh.

    Ricardo, The Ghostly Walker.

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  3. A mim (mesmo sendo novinha) já ouvi umas quantas buzinadelas e uns olhares de "alto a baixo" e senti me horrível. A minha mãe já passou por coisas semelhantes e destestaria que a próxima geração passasse pelo mesmo. E é para isso que nos temos que educar e que temos que nos perceber, saber respeitar aquilo que não nos pertence. Faço uma venia à tua atitude!

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  4. Mais uma vez, um post teu que não me desilude. Desde à cerca de 5 anos que sou leitora assídua dos três blogs que já tiveste e é com prazer que acompanho a tua evolução. De todos os blogs que existem na blogosfera, és o único que nunca deixei de acompanhar e de apreciar o conteúdo. Parabéns, continua sempre assim Inês.

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    1. Eu é que agradeço a leitura tão assídua e teres acompanhado os meus blogues! É inacreditável ler esta mensagem, e é tão bom saber este tipo de coisas. Não tenho palavras. Muito obrigada :)

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  5. Não achei a tua atitude exagerada! Metade dessa atitude em muitas pessoas e o mundo seria bem melhor (:

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  6. Ainda há pessoas que olham para mim indignadas quando eu digo que sou feminista. Mas basta ler uma ou duas histórias assim para se perceber que de facto as mulheres ainda não são suficientemente respeitadas e que os "nãos" ainda não são prontamente ouvidos. Essa situação que contaste é ridícula e explica muito bem a falta de valores da sociedade em geral e dos canais generalistas em particular.

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  7. Estou indignada por ti, pelo jornalismo e pelos editores que aprovam reportagens destas. Mas que raio?!


    www.asofiaworld.com

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