Ainda sou apanhada de súbito quando atendo uma chamada sua e oiço a sua voz. Talvez por não ser um ritual recorrente, atender as suas chamadas. Costuma ser ele a atender as minhas e já vou preparada. Pede a distância das nossas idades e a frescura da sua adolescência que seja eu a mais preocupada em ligar – também eu já estive do outro lado a atendê-las (a falhar a maioria). O tarifário continua a ser um jogo de cintura: ele tem minutos limitados e necessita de escolher a dedo com quem os investir. Curiosamente, eu sinto o mesmo.
Na minha memória, a sua voz ainda não desceu tantas oitavas. Um embaraço para ele, que a cada dia cresce, agrava-se, alarga e ocupa o seu espaço no mundo, procura-o, devora-o. Mais do que pertencer a algo ou a um lugar, todos queremos algo que nos pertença. Que seja nosso sem posse.
Ele ainda é pequeno na minha memória. É uma teimosia ingrata; também eu ainda sou a pequena Inês (e nunca Inêsinha) na memória de tantos. Ainda tenho franja. É uma pena, já ocupei tanto lugar e tão melhor - que desconsolo apenas ficar pelos primeiros capítulos. Não me permito a fazer-lhe o mesmo, embora, cada vez que sou apanhada em falso, saiba que o faço com doçura. Os outros também mo fizeram – e fazem.
“Promete-me que não cresces mais do que eu” dizia-lhe e ele acenava, sem saber que não poderia cumprir a promessa. Era mais importante e nuclear para ele saber que não queria estar contra mim, mesmo que ficasse mais alto. Já tenho de levantar o queixo para o olhar nos olhos, mas perdoo-lhe o nada que tem a pedir desculpa. Durante muitos anos, foi ele a olhar para cima. Fazia-me perguntas, entregava o seu brinquedo de confiança, indicava-me o caminho, mesmo sabendo que era eu quem lhe dava o Norte. Queria ir para um qualquer lugar e puxava-me, segurava-se forte nas pernas rechonchudas, pronto para ir, mas precisava da minha mão para andar. E eu, que nunca tive sentido de orientação, fui bússola.
Foram poucas as vezes que o fiz olhar para mim cá do alto – nunca me coube essa perspetiva. Os meus joelhos sacrificaram-se pelos seus olhos, ora baixando-me para ver o mundo do lugar dele, ora dando-lhe colo para ele ver o mundo do meu lugar. Eu, que só conhecia o colo que se recebe, aprendi com ele o colo que se dá. Os meus bracinhos frágeis a lutar contra a insegurança para o agarrar com um cuidado que nasceu ao mesmo tempo que ele. Não me esquecia da mão pousada na cabeça, diretriz que ficou. Tenho-lhe uma gratidão visceral por nunca ter querido abandonar o meu colo tão inexperiente. Havia entre nós uma leitura sem idade nem língua, cada um a entendia à sua maneira. Nada se perdia na tradução.
Há um encantamento, pouco lógico, mas muito humano, em testemunhar de perto o crescimento de alguém – tão de perto que eu não o vejo crescer e ele não me vê envelhecer. É como assistir a um filme pela primeira vez e descobri-lo como um dos favoritos da vida; queremos repetir a transmissão, não perder nenhum detalhe e fazer parte do enredo, das passagens preferidas. Entendo nele muita coisa que não me diz e não tomo nenhum dos seus traços por garantido. Sei que estão de passagem.
Descubro-lhe coisas novas todos os dias e evito trazer comigo o guião do dia anterior. Hoje, esse papel já não lhe serve. É este o derradeiro desafio da adolescência: vestir vários papéis, caber em poucos, levar alguns pormenores e falas connosco até criarmos o nosso. Obrigá-los a ficar com o primeiro guião é crueldade de encenador. Pode resultar em tragédia.
Encontramo-nos nas canções que trocamos um com o outro, no sentido de humor que partilhamos (ou que lho incuti, sem querer, mas adorar?), no mesmo sonho em ter mundo e nos mesmos enlaces familiares (temos a mesma raiz, sabemos onde estão a fruta e os ramos frágeis). Uma cumplicidade que me diz, todos os dias, que ele gosta de mim e que eu gosto dele. Não há tempo a perder com quem não gostamos numa adolescência em que o mundo parece ser um abismo constante onde nós corremos perigosamente ao longo da margem.
Observo paralelismos entre nós cada vez que ele pousa o pé numa das minhas pegadas, e isso evoca-me mais o espanto do que o orgulho. Saber que ainda sou bússola assusta-me: também eu ainda estou a descobrir o caminho. Mas conheço a solidão de fazê-lo sem nenhuma pista na terra batida à minha frente. Se ele atalhar, se encontrar um outro trajeto para percorrer, espero que encontre outras pegadas. Espero que deixe as dele também.
Inês foi uma das suas primeiras palavras, um desafio que não se pede a nenhum ser que ainda está a descobrir os sons. A sua voz.
Talvez seja uma observação injusta quando afirmo que ele me liga pouco. Chamou-me desde o seu princípio. Em todas as suas vozes e oitavas.
Escutei sempre.
A vossa amizade é tão linda 🥹 que sorte de se terem um outro! 💕
ResponderEliminar❤️
ResponderEliminarTão bonito ❤️
ResponderEliminarQue sejam sempre assim pelo caminho da vida, ainda que o GPS vos possa indicar orientações diferentes!
Que bonito e uma sentida prova de amor e carinho um pelo outro. Que seja sempre assim. 🤍
ResponderEliminarUm dia, a minha prima olhou para cima e disse-me que eu havia de crescer e deixar de brincar, por isso tinha de aproveitar todo o tempo que lhe restava. Ela não sabia (e eu sabia bem demais) que ia ser ao contrário, as brincadeiras dela iam mudar e caber-me-ia a mim encurtar a distância entre duas pessoas que estão a perceber o espaço que ocupam no mundo, mas em fases distintas. Ela continua a olhar para mim à procura de respostas, diferentes de "quais são as cores do arco-íris", eu eu dou-lhe a mão, como dei sempre, sem nunca a puxar para mim.
ResponderEliminarÉ tão bom vê-los crescer