Avó neblina


Havia um desconsolo no meu olhar quando abria as janelas e via uma declarada sabotagem ao meu verão no céu carregado e na brisa fresca demais. Já a minha avó não partilhava do mesmo desânimo: eram os seus dias de verão preferidos, uma lógica de predileção que tem pouco fundamento, da mesma forma que temos uma cor preferida e um sabor de gelado irrecusável. 

Olhava para os meus patins em linha e para a televisão sabendo que ambos me prometiam um entretenimento e aventura que a praia com neblina não podia igualar. Não tinha muito tempo para me imaginar a patinar na rampa de casa porque, no mesmo instante, já estávamos porta fora, prontas para ir para o areal e sem poder ceder ao meu capricho. Viria a ceder a muitos, anos mais tarde. Caprichos deliciosos onde gostei de ser dona de mim e das minhas vontades. Porém, esta imposição inocente é irrepetível. Só se vive na infância e nunca a apreciamos até já não termos idade para a apreciar. Já ninguém nos pode impor nada. Com ou sem inocência. 

O caminho era feito a pé, o arranque em asfalto e a reta final em terra batida – sabia que estávamos a chegar quando o som dos meus chinelos no chão mudava. Um caminho que, ocasionalmente, seria percorrido por mais de quatro pernas, mas que, na maioria das vezes, só contava com nós duas.

Nunca percebia porque é que a minha avó arranjava o cabelo com laca antes de ir, um primor que não era compatível com a brisa húmida. O cabelo estaria em total desalinho em dois segundos. “Antes dois segundos à tua maneira do que nenhuns”, dizia-me. Não se percebe o quanto podem durar os segundos quando ainda se tem poucos anos na pele. 

Éramos nós e as gaivotas no areal. A areia tão gelada e molhada que me fazia querer enrolar na toalha. O mar, por vezes, sem estar à vista, embrulhado num nevoeiro denso e triste. Mas quem olhasse para ela, via aquela felicidade que começa nos olhos. Uma satisfação ímpar. 

Não me lembro de procurar pelas cores da bandeira, não importava. O mar enrolava-se em tons carregados pelo dia outono precoce que tinha chegado sem pedir licença. Se fechar os olhos, vejo o cabelo dela numa coreografia sincronizada com as suas calças e camisa, ambas num tecido fluído ao sabor do vento. Lembro-me de pensar que ela não tinha roupas de avozinha – uma constatação que encarava com bizarria e admiração. Queria ser igual. 

Segurava a bainha das calças pelos joelhos e levava sempre os pés ao mar gelado e hostil. “Está ótima”, dizia-me, uma promessa que carregava em si o desafio para me juntar a ela e o limite – era até ali que podia ir, se quisesse ir. “Depois não te consigo salvar se fores mais além” avisava-me, os olhos num paradoxo de alerta e doçura. Viria a repetir-me esta mensagem muitas mais vezes enquanto cresci, mesmo nunca mais a dizendo, na verdade. Via-a estampada nos seus olhos, o mesmo olhar. Ela quis salvar-me de todas as vezes que fui para o mar além do limite. Custou-lhe nunca ter tido pé para o fazer. E o alívio dela quando eu voltava, enregelada e coberta de uma areia carregada pelas ondas, era sem igual. Eu sabia nadar. 

No seu saco cabia toda a humanidade - eu era pequena demais para conseguir ver outra dimensão, ainda sou. Trazia tudo o que precisava e mais uns danoninhos, que eu comia com o maior gosto do mundo, o mar que ainda tinha nos lábios a salgar o doce. Não há valor nutricional que suplante o valor da generosidade com que ela mos comprava e levava, o cuidado com que me colocava o copinho e a colher nas minhas mãos pequenas e húmidas, cheias daquela areia que não sai, gruda. “Queres outro?” perguntava-me sem eu ainda não ter terminado o primeiro, ansiosa por repetir o gesto de carinho. Hoje, satura-me só de pensar naquele sabor artificial do morango, jamais o voltaria a comer. Mas do amor dela eu nunca vou enjoar. 

Não sei porque é que ela gosta dos dias de verão em que a praia está em pura neblina. Via apenas a satisfação no seu rosto, os olhinhos pequenos a fecharem-se, a musicalidade com que me dizia “assim é que se está bem”. Nunca concordei com ela, mas não lhe neguei este prazer. 

A neblina, hoje, convida-me a outros momentos de consolo. Tem o som das páginas de um livro, do abrigo de uma sala, de uma música melancólica e da cerâmica quente das chávenas. Continuo a preferir a praia em pura cor, a areia a escaldar-me. Quero não poder ver o mar pela intensidade do brilho do sol e não pela densidade da neblina. 

E ainda assim, nestes dias de nevoeiro que arrepiam a pele e tiram a saturação ao céu, ligo-lhe e digo “hoje, estavas tão bem na praia”. “pois estava”, concorda sem hesitação. Oiço-lhe o sorriso com que me responde.

Às vezes, ainda vamos.

3 comentários

  1. Ainda bem que não sou a única a gostar de nevoeiro. Há algo mágico e misterioso que eu adoro. Lindo o seu texto.

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  2. Há palavras que são abraços, sem conseguirmos explicar bem o porquê. Este texto foi um deles ❤️

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